com os avanços da tecnologia, hoje é possível acessar mais facilmente material original de época para complementar o livro didático, revisitar momentos históricos e inspirar boas discussōes.
Recentemente, meu filho chegou em casa com a cópia de um teste que era aplicado a eleitores do estado da Louisiana, aqui nos EUA, em 1964. A regra era: todo eleitor que não pudesse comprovar ter cursado no mínimo até a quinta série, teria de fazer o tal teste em menos de 10 minutos. Se não passasse, perdia o direito ao voto.
Os alunos, de uma classe avançada de História do último ano da high school (equivalente ao ensino médio) não conseguiram fazer o teste no prazo determinado e, mais, consideraram simplesmente ridículas as perguntas. Aliás, algumas dessas questões eram propositadamente ambíguas, feitas para confundir qualquer pessoa, ainda mais alguém em um ambiente de pressão, que estava simplesmente tentando exercer seu direito ao voto.
Com medidas como essa, um grupo de maioria branca e rica se alternava no poder, excluindo pessoas pobres e na maioria negras do processo eleitoral.
Saber da existência deste documento e interagir com ele teve um impacto grande não somente sobre meu filho, mas em todos os seus colegas. A injustiça da situação, que parecia absurda demais para ser verdade, tomou proporções mais reais quando puderam eles mesmos passar pela experiência do teste.

A situação seria igualmente absurda se recontada em um livro didático? Certamente. Mas a indignação talvez não fosse a mesma. Afinal, ao ter ao alcance das mãos (ou pelo menos dos olhos) um material que comprove um momento da história da humanidade atribui um caráter de realidade a algo que, às vezes, parece simples abstração.
Pessoalmente, eu me lembro da emoção de estar numa ala da biblioteca da universidade onde fiz mestrado e doutorado, dedicada a livros raros. Todo o cuidado que cercava cada visita deixava a impressão de que se entrava num templo. O estudo da história não tem de necessariamente causar emoção nos estudantes. No entanto, os panfletos, jornais, revistas, áudios, objetos de época, ou documentos originais de forma geral nos lembram que se referem a pessoas e a suas vidas cotidianas.
Segundo a Biblioteca do Congresso Nacional, dos Estados Unidos, aprender com documentos originais, ou com as chamadas fontes primárias, leva os alunos a se relacionarem com os fatos do passado de uma forma mais pessoal e promove um entendimento mais profundo da história como uma série de eventos humanos.
Onde buscar
No caso desta importante biblioteca, há inclusive seções e assistência especialmente dedicadas a professores que queiram se utilizar deste material com seus alunos. Para muitos professores, porém, o acesso nem sempre é fácil .
Se este é o seu caso, não desanime. O importante é não menosprezar o que se tem. A biblioteca local ou os arquivos da sua cidade podem ser um bom ponto de partida. Quem sabe seja possível encontrar, por exemplo, coleções de jornais que já não existem ou mesmo edições antigas dos que continuam em circulação? Gravações de programas de rádio do passado também podem se mostrar grandes testemunhos de uma época.
Muitos dos documentos antes inacessíveis hoje foram digitalizados e colocados à disposição do público em sites de institutos de pesquisa, universidades e até mesmo de alguns veículos de imprensa. Na Unicamp, por exemplo, há o excelente Arquivo Edgard Leuenroth que tem um bom acervo sobre a história do movimento dos trabalhadores no Brasil.
Bibliotecas, museus, arquivos públicos e acervos digitalizados são em muitos casos subutilizados. Há narrativas relevantes em acervos insuspeitos, que podem ser muito úteis.
Mas hoje quero sugerir recursos também ignorados ou subestimados quando estudamos a história da cultura e de nossas comunidades: nossa casa, nossa família e, em suma, nossa própria experiência humana.
Para quem quiser tentar, segue uma sugestão de atividade que pode ser adaptada ou modificada, como sempre, de acordo com cada contexto e objetivo de aprendizado. Pode servir de base ou de inspiração aos professores de Históriia que buscam estimular seus historiadores principiantes a se envolverem com o estudo e a interpretação dos eventos humanos que fazem a nossa história.

Que tal começar com a história familiar?
Trabalhar com elementos da história familiar dos estudantes é sempre uma grande pedida para introduzir ou reforçar a ideia de que tudo à nossa volta faz parte da História, ainda que em alguns casos seja difícil sem a cooperação dos pais ou responsáveis. Idealmente, o projeto funciona melhor com a participação e apoio das famílias.
De qualquer forma, se as condições forem adequadas, é importante definir que aspecto da história familiar será investigado. Por exemplo, pode-se sugerir que eles busquem cartas antigas trocadas entre membros de uma família que recontem um evento importante da cidade, do país ou do próprio núcleo familiar. Note que é possível, embora um pouco mais trabalhoso, definir objetivos distintos para cada grupo de estudantes dependendo do material a que terão acesso.
Assim, outros objetos, e não somente cartas, podem ser igualmente interessantes: tais como anúncios de nascimento ou de morte de um membro da família, vestuário antigo que tenha tido algum significado como vestidos de noiva, roupas de batizado, ou outra peça que tenha uma informação por trás (fotos, um par de botas, uma cadeira específica, um objeto que já não vemos nos dias atuais…).
Até mais importante que a curadoria e coleta de objetos e documentos com os alunos é a narrativa que se pretende construir a partir deles. Deixe que esses objetos contem uma história ainda que seja distinta da expectativa inicial. Na realidade, as incongruências entre o que se busca e o que se encontra são excelente tópico de discussão em si.
De muita importância também é ter clareza sobre as perguntas que devem ser coletivamente levantadas para acompanhar e auxiliar a atividade. Aqui algumas questões possíveis (mas não exaustivas):
Antes
- – Qual é o objetivo da pesquisa?
- – Que elementos vamos coletar?
- – Que critério vamos utilizar na coleta desses documentos/ objetos/ fotos/vídeos? Ex.: datas, pessoas envolvidas, qualidade do material (legibilidade, integridade)…
- – Quanto tempo dedicaremos a esta coleta?
- – Como vamos catalogar cada peça coletada?
- – Que tipo de explicação devemos dar aos colaboradores (pais, irmãos, outros parentes…) da nossa pesquisa?
- – Como respeitar e preservar a privacidade dos participantes ?
- – Qual a nossa responsabilidade na garantia da integridade de cada peça coletada (ou seja, cuidado no manuseio, proteção a informações sensíveis)?
Durante/Depois
- – O material coletado corresponde a nosso objetivo inicial ?
- – Conseguimos material suficiente para responder a/representar nosso objetivo de pesquisa?
- – O que aprendemos sobre nossa família, comunidade, período histórico ao fim de nosso projeto?
- – Como relacionar o que aprendemos com fatos históricos de nosso livro didático?
As perguntas acima são apenas sugestões e outras mais específicas e profundas podem surgir ao longo da atividade. Desnecessário reforçar que todo o processo de pesquisa deve ter acompanhamento da professora/professor e, de preferência, de pequenos grupos de estudantes, para que todos monitorem o trabalho de todos. Isso encoraja o envolvimento e a colaboração e faz com que se sintam engajados e seguros durante a realização do projeto.
Nesse sentido, entenda que nem todos os alunos terão como contribuir com seu próprio material e mesmo assim podem ser pesquisadores ativos ajudando a catalogar e compreender o acervo obtido por seus colegas.
Adicionalmente, sugiro que se possível o projeto seja abraçado por vários professores de História. Um grupo de docentes trabalhando juntos tende a enriquecer o conteúdo pedagógico, a abordagem didática, assim como a metodologia de pesquisa. A troca de experiências em cada etapa do processo se refletirá na qualidade final do projeto. Além disso, um colega servirá como apoio ao outro na medida em que surjam dúvidas (inevitáveis) no andamento do projeto.
A forma de relatar e analisar os resultados do projeto depois de sua conclusão pode estar prevista juntamente com os objetivos iniciais. Entretanto, os resultados da pesquisa, como já advertido, podem levar a respostas não esperadas e suscitar novas questões que podem influir ou não na avaliação e na forma da apresentação final . De qualquer maneira, há várias alternativas criativas para encerrar uma atividade dessa escala, tornando ainda mais gratificante o envolvimento de todos.
- Apresentação de pôsteres: cada aluno pode criar um pôster resumindo o que aprendeu em seu projeto de história familiar. Cada pôster pode ser exposto nos corredores da escola. Para essa opção, é preciso que não haja informação sensivel que fira a privacidade das pessoas envolvidas na pesquisa.
- eBook: A turma organiza um eBook reunindo todas as narrativas. Nesse caso, é possível incluir professores de Português para apoio com a redação de cada história. Os textos podem ser ilustrados com o material coletado durante o projeto.
- Podcast: Os alunos criam um podcast para contar um pouco de como foi realizar o projeto e que lições aprenderam ao longo da atividade. É desejável que uma conclusão desse tipo conte com o apoio técnico de alguém da comunidade escolar e, melhor, que todos possam participar de alguma forma. Mesmo que não seja relatando seus projetos, é possível envolver os alunos em outras tarefas como ajudar com entrevistas e demais funções necessárias para a gravação, publicação e divulgação de um podcast. Para turmas grandes, em que o resultado seja composto de múltliplas ou extensas narrativas, o podcast pode ser dividido em vários episódios.
O sucesso de uma empreitada desse tipo vai além de se ensinar/aprender um conteúdo: tem a ver com despertar nos estudantes a curiosidade de um pesquisador, um sentimento que se parece com o de um detetive, juntando evidências para resolver um caso ou de alguém que se vê diante de um quebra-cabeças instigante e divertido.
Já fez algo parecido ou tem outras ideias? Conte pra gente contato@claraboiacursos.com . E se este post te inspirar a tentar um projeto semelhante, escreva também!