A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não pode prescindir da continuidade da leitura daquele (A palavra que eu digo sai do mundo que estou lendo, mas a palavra que sai do mundo que eu estou lendo vai além dele). (…) Se for capaz de escrever minha palavra estarei, de certa forma transformando o mundo. O ato de ler o mundo implica uma leitura dentro e fora de mim. Implica na relação que eu tenho com esse mundo. Paulo Freire, 1981
Alguns anos atrás, depois de um longo inverno no meio-oeste americano, eu e meus alunos ansiávamos pela primavera. Quem já morou no hemisfério norte talvez se lembre que a chegada da primavera se anuncia por meio de alguns sinais.
Repare que não me refiro ao mais óbvio, ou seja, o surgimento das flores. Claro que esta é a forma clássica e, portanto, a mais fácil de ser notada. Mas há várias outras.
Depois de anos morando ao norte do Equador, comecei a observar alguns outros indicativos mais sutis tais como o retorno acanhado de alguns pássaros, uma chuva diferente (essa vai ser difícil explicar…), um cheiro peculiar no ar, a gradação da iluminação do dia…
Pensando em tudo isso, numa época em que trabalhava com uma das minhas turmas o tópico “olhar” por meio de várias representações literárias, pedi a meus alunos que fotografassem com uma câmera qualquer , como a mais comum, a de seus celulares, um sinal de primavera.
Deixei, claro, no enunciado da tarefa, que não precisava ser a forma mais manjada: o surgimento das florzinhas que dormem sob o solo e que começam, como do nada, a sugir na superfície. Isso é mesmo muito bonito e animador, mas queria, repito, algo menos óbvio. Quanto mais criativo o olhar, melhor! Essa era a base da tarefa de casa.

Fiz questão que entendessem que eu buscava um olhar mais pessoal de cada um. Em outras palavras, uma interpretação da chegada da primavera. Afinal, nosso tópico abordava exatamente a peculiaridade do olhar de cada um e como se manifesta na forma narrativa.
Adoraria poder compartilhar algumas das melhores fotos. E sugiro, caso você tente algo do gênero com seus alunos, que arquive a produção dos estudantes para que não se arrependa como eu agora.
A moral dessa história é que a atividade deu tão certo que eu a repeti algumas vezes com outras turmas naquele mesmo curso, que era um intermediário de Leitura e Conversação para universitários que estudavam português como língua estrangeira.
Para dar uma ideia, um dos meus trabalhos favoritos veio de uma aluna que, passeando em Chicago, fotografou um monumento no Millenum Park, conhecido como The Bean (O Feijão). Em vez de uma simples foto do monumento, como a que se vê abaixo, ela fotografou o reflexo de crianças que brincavam em frente à estátua, num claro dia de primavera.

A sutileza do olhar dessa aluna virou símbolo dessa atividade para mim. O mais bonito de ver, no entanto, foi que cada um dos participantes compreendeu a variedade de maneiras pelas quais percebemos e interpretamos um acontecimento. Nossa discussão então enveredou por um terreno que eu não tinha planejado: símbolos, linguagem cognitiva, imagens mentais…
Se você leu meu último post Aprendizado ativo deve ter objetivos claros você talvez se lembre do alerta da professora Maryellen Weimer sobre a importância de se traçar objetivos para qualquer atividade. É verdade. Por outro lado, nunca podemos nos esquecer (e valorizar) o que os americanos chamam de unintentional learning (aprendizado não-intencional). Como professores devemos sempre nos lembrar que o aprendizado pode surgir e florescer de formas não planejadas e nem por isso é menos válido.
O mais indicado é planejarmos sempre, claro, mas na mesma medida estarmos abertos às oportunidades de desvendar novos caminhos e tópicos e nunca limitarmos a curiosidade e o interesse de nossos alunos ( nem os nossos!), apenas guiá-los com respeito e interesse.
Foto em destaque: Cerejeiras japonesas florescendo, sinalizando o auge da primavera. Crédito: CCO License.
Faça parte desta conversa. Subscreva-se a nossos emails semanais!
Oi Selma!
Adorei esta releitura da primavera! A educação pode (na verdade, deve!) ser humanizada e a leitura passa também pela visão e pela percepção.
Muito obrigada por compartilha esta experiência conosco!
CurtirCurtir
Obrigada pela visita, Leila! Sim, apesar de todo o meu reconhecimento à importância da tecnologia na educação, acho fundamental não perdermos de vista nossa própria humanidade e a dos nossos alunos. Evoé!
CurtirCurtir
Ler o mundo precede a leitura da palavra. Estamos precisando olhar e ver o que está ao nosso alcance. Adorei suas colocações tão sensíveis, como sempre.
CurtirCurtir
Oi, Fá, que legal ter você por aqui. Adoro poder contar com seu apoio! E vou para sempre tentar fazer por merecê-lo. Se tiver algum tema que você gostaria de ver abordado, me avise. Beijo!
CurtirCurtir
Muito bom o artigo, amei a proposta que você fez aos alunos e a foto da escultura do Anish Kapoor está demais!
CurtirCurtir
Que legal você ter gostado, Mariana! Como fotógrafa, você deve lidar todo o tempo com a sutileza da nossa percepção, não é? São mais ou menos atividades como essa que quero oferecer nos cursos, para que professores possam multiplicar ideias. A ver! Abraço!
CurtirCurtir
Sim, como fotógrafa trabalhar a sutileza do olhar e construir narrativas é um exercício fundamental! Vi que você também vai oferecer cursos de português para estrangeiros, fiquei empolgada… o Nils está precisando treinar mais a língua, acho que seria uma boa oportunidade 🙂
CurtirCurtido por 1 pessoa
Sim, este inclusivedeveria ser o primeiro curso. É que como estou trabalhando sozinha tudo leva um tempo enorme…Mas uma hora tudo sai! Obrigada pelo apoio!
CurtirCurtido por 1 pessoa