Sala de Aula: especial Dia dos Professores

Em depoimento emocionante, a professora paraense, radicada no Espírito Santo, Ana Claudia Araújo, reflete com profundidade, nesta data de celebração, sobre a profissão, nosso compromisso com os alunos e, principalmente, por que ainda vale a pena continuar.

Ninguém começa a ser professor numa certa terça-feira às 4 horas da tarde… Ninguém nasce professor ou marcado para ser professor. A gente se forma como educador permanentemente na prática e na reflexão sobre a prática (Paulo Freire. A Educação na Cidade, 1991)

Semanas atrás, o Ministro da Educação do Brasil afirmou que “hoje ser professor é ter quase uma declaração que a pessoa não conseguiu fazer outra coisa da vida”. Não sei quantos professores de fato o senhor ministro conhece, mas aqui na Claraboia falamos todo o tempo de professores que sabem muito bem os motivos pelos quais escolheram a carreira docente e se não sabem aprendem seus motivos cotidianamente, encarando decepção, descaso, falta de infra-estrutura básica , sem perder de vista o que os move, numa jornada quase quixotesca mas fundamental.

Tenho a honra de apresentar uma destas pessoas, Ana Claudia Araújo, professora de português da escola EEEFM Mariano Firme Souza, em Cariacica, ES. No ano passado, sua escola participou da Olimpíada de Português:  “… um concurso de produção de texto voltado para alunos de escolas públicas [..] parte do programa Escrevendo o Futuro, que existe desde 2002, como uma ação social do Itaú e do CENPEC. A partir de 2008, o [programa] passou a integrar uma política pública do MEC, para a promoção da leitura e da escrita no país, além de prezar a relação de alunos e professores com a localidade em que atuam, já que o tema das produções é sempre O lugar onde vivo” ela explica.

 Sob sua orientação, a aluna-autora Kesia Cardoso Gonçalves conquistou a Medalha de Prata na disputa nacional com a crônica Lágrimas de esperança e foi a São Paulo representar sua escola, na categoria Crônicas. Além da premiação, Kesia hoje cursa o ensino médio como bolsista de uma escola privada, obtida  em decorrência de seu bom desempenho no concurso.

Premiação em São Paulo> Foto: Itaú Social/Camila Kinker

Em sua bela crônica, a estudante lembra que , graças a uma certa professora, passou a enxergar beleza onde antes só via degradação.  O relato remete particularmente a uma aula de Ana Claudia, na praça do bairro. “Na verdade foi um momento da caminhada em que paramos lá e eu comecei a conversar com eles[…] E eu lembro que ficou um silêncio… estávamos em três professoras e mais de 40 alunos e todos eles em volta de mim, silenciosos, atentos.”

No texto a seguir, Ana Claudia, professora inspiradora, nos conta que também foi inspirada por alguém. Fala da experiência de preparação para o evento da Olimpíada  sobre o qual confessa : “ainda não consigo escrever sem me emocionar”,  sobre a importância de sua disciplina em suas escolhas como docente e das dificuldades deste momento de ensino remoto emergencial.

Em um testemunho honesto, ao mesmo tempo lírico e coerente, Ana Claudia se mostra uma educadora- “aprendiz”, poderosa e empoderadora, e que portanto poderia ser qualquer coisa na vida. Sorte a nossa que ela escolheu ser uma educadora permanentemente se formando na reflexão de sua prática. Freire aprovaria.

A melhor aula de campo da minha vida

Por Ana Claudia Araújo

Foto: Arquivo Pessoal

“Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende” (João Guimarães Rosa)

Ouvi essa frase pela primeira vez da boca de uma professora. Uma dessas pessoas que são inspiração, que despertam suspiros. No dia em que pronunciou essas palavras, ela me fez querer ser também inspiração para outros. E, no mesmo momento em que desejei isso, compreendi que, para alcançar esse feito, precisaria me fazer aprendiz.

Há quem pense que ser aprendiz é adotar uma condição de passividade, mas logo me adianto em desfazer esse mito. Aprendizes são desbravadores, olham o mundo com curiosidade, não se conformam e sempre desconfiam de explicações fáceis.

Mas é claro que colocar-se e reconhecer-se como aprendiz é apenas um começo. A dureza dos dias, as inúmeras resistências e precariedades, o anseio de chegar a um objetivo e até o excesso de zelo com todo esse processo de ensinar(-se) são desvios que nos fazem esquecer, até com muita frequência, as doces emoções com as quais iniciamos a jornada.

Nos últimos quatro anos, trabalhando como professora da rede pública de ensino – e vindo de uma certa experiência na rede de ensino privada – tive diversos motivos para me questionar se era mesmo possível continuar. Ainda hoje, em diversos momentos, continuo me questionando. Mas, ao me reinventar e reaprender e ressignificar, sou impelida pelo desejo de continuar.

Devo ressaltar que tenho como aliada uma paixão de menina, força matriz e motriz da minha atuação como professora de Língua Portuguesa. Essa aliada se chama Literatura, mas procuro pensar na Literatura não apenas enquanto arte sublime, de palavras edificantes, para seres eruditos, de gostos rebuscados. Penso, antes, sob o olhar de Antônio Cândido, que a concebe como uma necessidade básica, essencial a qualquer ser humano, a Literatura em sentindo amplo, abarcando toda e qualquer forma de fabulação, de imitação do mundo real, recrudescendo ou amainando suas/nossas imperfeições. A Literatura cuja função primeira é humanizar.

A dureza dos dias, as inúmeras resistências e precariedades, o anseio de chegar a um objetivo e até o excesso de zelo com todo esse processo de ensinar(-se) são desvios que nos fazem esquecer, até com muita frequência, as doces emoções com as quais iniciamos a jornada.

O trabalho indissociado com a Leitura e com a Escrita, em sala de aula, é, sem dúvida, a via de acesso mais fluida que já encontrei para alcançar e conquistar meus alunos. É claro que não é um trabalho fácil. Há que se reparar as inúmeras exigências, conhecer os gostos e as especificidades de cada sujeito, explorar a heterogeneidade para chegar à harmonia na diferença, pesquisar, planejar, abrir mão de hábitos e pontos de vista costumeiros e, claro, há que se estar sempre aberta ao inesperado, a surpresas que podem ou não serem agradáveis.

Particularmente nos dois últimos anos, venho conseguindo realizar um trabalho em torno da leitura e da escrita que me despertam imensas aprendizagens e, por isso, grande satisfação. Lembro agora que minha melhor aula em 2019 se deu na rua. O objetivo inicial era que os alunos produzissem uma crônica, a partir do seu “lugar no mundo”. Previamente à escrita, fizemos dezenas de leituras. Lemos e discutimos crônicas de todos os tempos, de variados autores, de diversos tons. Destrinchamos as características do gênero e as facetas que ele pode assumir, assemelhando-se ora à poesia, ora ao texto jornalístico. E, quando achei que eles estavam prontos para escrever uma crônica sobre o lugar em que viviam, propus que o fizessem.

Diante da baixa adesão, quis saber o que havia impedido a escrita. Quase todos diziam que não havia nada para escrever sobre um lugar tão feio e tão ruim. Foi quando percebi que a relação daqueles estudantes com seu lugar (incluindo a escola) era muito negativa. Mas o que eles não quiseram expressar por meio da escrita, e expressavam ali, no diálogo, não era muito diferente do que eu mesma senti ao chegar naquele lugar pela primeira vez. E assim veio a ideia de fazer aquela que hoje chamo de melhor aula de campo que já dei.

Saímos da escola, sob um sol ardente e fomos “ler” as ladeiras daquele morro, a praça depredada, os meninos do tráfico, o esgoto fétido, mas também lemos a paisagem em torno, as histórias que as ruas contavam, a casa de um, o vizinho de outro, o pedreiro empilhando tijolos para erguer uma parede e até os cachorros agitados pela nossa passagem. Foi dessa aula, na rua, que nasceu a crônica que nos levou à final da Olimpíada de Língua Portuguesa, na qual ficamos com medalha de prata. Mas sei que, mais importante que a medalha, o prêmio maior que ganhamos foram as vivências, os motivos e as ferramentas incorporadas para nos colocarmos no mundo. E, quando falo “nós”, me refiro a todos os alunos, a todos os professores, aos pais, aos avós, a todos daquela comunidade esquecida, que foram tocados por esse trabalho.

Foi quando percebi que a relação daqueles estudantes com seu lugar (incluindo a escola) era muito negativa. Mas o que eles não quiseram expressar por meio da escrita, e expressavam ali, no diálogo, não era muito diferente do que eu mesma senti ao chegar naquele lugar pela primeira vez. E assim veio a ideia de fazer aquela que hoje chamo de melhor aula de campo que já dei

Este ano, com a pandemia, o ano começou cheio de incertezas. Não teve aula na rua, mas graças à criatividade, ao trabalho de colaboração e às ferramentas digitais, conseguimos envolver parte dos nossos alunos em uma “expedição” pelo Espírito Santo, explorando nossa identidade cultural, passeando pela nossa arte, pelos nossos sabores, viajando ao passado e voltando ao presente. 

Logo que as aulas foram suspensas e todos deveriam estar em casa, soubemos que um de nossos alunos teve a casa interditada pela defesa civil e estava desabrigado, junto com sua mãe e seu irmão. O anúncio do trabalho remoto, com atividades online, a princípio, me trouxe grande revolta e tristeza. Pensava em tantos meninos e meninas que não têm sequer uma TV, que não têm casa!

Por fim, estou aqui, tentando aprender, recordando essas experiências e procurando fazer as pazes com termos como “aulas online”, “ensino remoto”, “atividades assíncronas” e tantos outros. Vejo que a nossa luta, enquanto cidadãos, não é contra essas ferramentas, mas a favor de um país, de um mundo, menos desigual. Com isso, finalizo este texto que já se alongou por muitas linhas, grata pela oportunidade de, mais uma vez, ser aprendiz!

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Imagem em destaque derivada de foto de: ThisisEngineering

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