Novo Ensino Médio para quem?

Médio ou medíocre? Moderno ou velho de roupa nova? A que e a quem se destina o novo currículo.

Sabe quando você está tão envolvida por um tema que tudo ao seu redor parece ter algo a ver com aquilo? E não estou falando dos malabarismos dos algoritmos, que nos perseguem de forma assustadora, mas daquelas situações em que conseguimos ver coisas que antes passariam batidas. É como se um ‘radar’ especial tivesse sido ativado.

Foi o que aconteceu estes dias enquanto eu lia na The New Yorker, um artigo sobre a Lowell,uma escola pública tradicionalíssima em San Francisco, California, que historicamente recebia apenas os estudantes mais seletos. Com a pandemia, a escola teve de mudar seu rígido sistema de admissão para a chamada loteria, ou seja, as vagas passaram a ser distribuídas por sorteio.

Antes que você pense que era este o tema que eu tinha em mente, já adianto que não, mas continue lendo para entender como este texto acabou me impulsionando a voltar ao meu tema inicial e escrever este post que você vê agora.

Pois bem, há meses queria escrever sobre o Novo Ensino Médio do Brasil. Eu sei que muito já se falou e várias plataformas educacionais já deram seu pitaco sobre o assunto, com muita propriedade inclusive. Mesmo assim, a mim me parecia quase uma obrigação que Claraboia tivesse um posicionamento.

Cheguei a buscar entrevistados e planejava ouvir professores com opiniões dos dois lados, ou seja, que aprovassem a ideia, assim como aqueles que viam a mudança com desconfiança. A mim me pareceu justo, também, esclarecer a meus potenciais entrevistados que o novo sistema não me agrada, mas que estava aberta a ouvir opiniões e argumentos contrários para compor um texto crítico e informativo, tanto quanto possível.

Não sei se porque a Claraboia é um projeto pouco conhecido, ou se minha posição já de cara espantou algumas pessoas (talvez tenha sido uma combinação das duas coisas), o fato é que não consegui quem quisesse conversar comigo. Em um caso, a pessoa havia concordado e depois simplesmente desapareceu … Vencida, desisti do texto e segui acompanhando o que tem se dito sobre a implementação das mudanças.

Durante este período, fui me tornando ainda mais antagônica com relação ao tal modelo. Especialmente observando como as empresas que oferecem serviços terceirizados às escolas privadas estavam vendendo o Novo Ensino Médio como a quinta-essência da educação inovadora, camuflando que a situação é conveniente para seus negócios.

Voltando ao artigo que li na revista americana, o que me fez decidir a escrever este post foi na verdade uma citação de Horace Mann, um dos precursores da educação pública nos EUA, de 1848. “Se uma classe possui toda a riqueza e a educação, enquanto o resíduo da sociedade é ignorante e pobre, não importa que nome se dê à relação entre elas ; esta última, de fato e verdade, será sujeito dependente e servil (tradução minha).

A passagem lá do meio do século XIX me trouxe à mente o tremendo retrocesso que pode estar em curso no Brasil, sob a roupagem mais moderna que se queira dar, e sob as bênçãos das startups mais inovadoras do mercado. Atualizando Mann, minha impressão é de que um grupo, ou uma classe social, vai se sair muito bem com o Novo Ensino Médio, enquanto para o outro se reserva um treinamento ao servilismo.

Foto por Pixabay em Pexels.com

Linhas e entrelinhas

Formalmente, o Novo Ensino Médio é uma mudança curricular estrutural (baseada na Lei 13.415/2017, que por sua vez altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação). Os entusiastas do plano veem como positiva uma de suas principais alterações : o aumento do número mínimo de horas de ensino, das atuais 800 horas anuais para 1000 horas. Do ponto de vista formal, o maior número de horas parece um avanço.

Flexibilidade curricular é outro dos pontos bastante destacados, quando se argumenta a favor do modelo. Isso porque serão oferecidos itinerários formativos que permitem aos estudantes escolherem dentro das áreas de conhecimento propostas e de formação técnica e profissional (FTP) o que desejam explorar. Segundo o MEC: “A mudança tem como objetivos garantir a oferta de educação de qualidade a todos os jovens brasileiros e aproximar as escolas à realidade dos estudantes de hoje, considerando as novas demandas e complexidades do mundo do trabalho e da vida em sociedade”. Pouca gente discute, no entanto, que demandas são essas e quem deve ou não atendê-las e especialmente de qual realidade estamos falando.

Os tais itinerários formativos compõem-se de disciplinas, projetos, oficinas e núcleos de estudo arranjados de acordo com a comunidade e, importante lembrar, de acordo também com as possibilidades e condições de cada instituição. Ah, sim, e cada escola tem independência para estruturar esses itinerários da forma que desejar, optando por quaisquer itinerários que queira ou possa oferecer à sua clientela, uma vez que também vai ter de levar em conta seu orçamento, assim como recursos humanos e materiais disponíveis.

Como já se sabe as áreas do conhecimento propostas dividem-se, assim: Linguagens e Tecnologias; Matemática e suas Tecnologias; Ciências da Natureza e suas Tecnologias; Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Mas só Matemática e Português serão obrigatórios nos três anos. As outras áreas podem ser ensinadas como a escola definir. E as chamadas matérias técnicas permitirão que alguns alunos (adivinhe quais?) terminem o Ensino Médio com uma certificação profissional. Se você se pergunta quem vai ensinar essas matérias técnicas, saiba que o MEC estabelece: “A Lei de Diretrizes e Bases da EDucação (Art.61, VI) permite a atuação de profissionais com notório saber exclusivamente para atender a formação técnica e profissional”. Não surpreende que este seja um ponto também polêmico.

Trocando em miúdos, com o aumento da carga horária, as escolas terão de funcionar em período integral, mas o documento do MEC fala de um prazo de 10 anos para que as escolas gradualmente atendam a este requisito. O MEC também é vago no que diz respeito às mudanças que terão de acontecer com relação ao Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) para que se adapte ao novo currículo.

Em artigo publicado no ano passado, a professora de História Ana Luiza Araújo Porto questiona qual será o papel de sua disciplina a partir do novo plano e se mostra preocupada com o material didático: “O livro didático da disciplina História como conhecemos não existe mais no Ensino Médio. O que temos agora é uma coleção de seis livros que abarcam História, Filosofia, Sociologia e Geografia, anunciando a organização do conhecimento a partir da interdisciplinaridade e com eixos temáticos”, ela informa. “A reflexão que fazemos ao observar as coleções é que não se trata de conteúdos de História, mas de conteúdos que fazem referência à História, como também os acontecimentos se restringem à mera descrição. Se anteriormente os livros didáticos já eram criticados pela superficialidade e homogeneidade, o que temos agora é o desenvolvimento de temas que dificultam a análise, a argumentação, a comparação, a crítica em relação ao que é apresentado”, complementa.

A professora acredita “[…]que toda História ensinada deva, de alguma maneira, aclarar questões do Tempo Presente, no entanto, do modo como as coleções se apresentam, o que se tem é um presente sem vínculo com o passado. Com o novo arranjo curricular do Ensino Médio, perdemos o direito ao passado e à memória histórica”.

Se você entrar em qualquer site de um dos ‘sistemas educacionais’ privados, que em muitos casos são adotados a bom preço por escolas particulares do país, o cenário de perspectivas é animador. Não tenho dúvida que em muitos casos eles de fato possam proporcionar a suas escolas conveniadas o mundo de possibilidades que a flexibilidade curricular do novo modelo lhes permite. Resta saber o quanto o fosso entre essas escolas e as que ainda lutam para desenvolverem itinerários pertinentes vai crescer…

Foto por Startup Stock Photos em Pexels.com

Projetos de Vida

Mesmo quem pouco sabe sobre o Novo Ensino Médio a esta altura já deve ter ouvido falar sobre os Projetos de Vida. Eu tenho certeza que a educação não se dissocia da vida e que, idealmente, deveríamos continuar aprendendo ao longo dela. Mas como definir, nessa fase da vida, um projeto a longo prazo? É disso que se trata?

Segundo descrição do MEC, no Novo Ensino Médio: “é fundamental trabalhar o desenvolvimento do projeto de vida dos estudantes, para que sejam capazes de fazer escolhas responsáveis e conscientes, em diálogo com seus anseios e aptidões.” Ao mesmo tempo, se uma das diretrizes deste plano é pragmatizar o ensino para melhor servir às demandas do mercado de trabalho e da sociedade, é necessário reconhecer que o modelo no qual as escolas técnicas forneciam “ofícios” no passado já não se aplica aos nossos dias.

Nos último anos, nos vemos às voltas com profissões que sequer existiam há uma década. De nada adianta certificar um/a profissional para atuar em determinado segmento limitado a um ponto do processo produtivo, sem que essa pessoa conheça e compreenda o processo inteiro. Os profissionais mais bem sucedidos atualmente são aqueles que refletem sobre o que fazem, têm autonomia, criatividade e capacidade crítica. E nada disso se aprende dentro das restrições de um currículo pragmaticamente técnico.

As escolas de ponta do país sabem disso e já se preparam para formar pensadores autônomos, aptos a compreenderem mecanismos e para neles interferirem. Afinal, sem uma educação mais ampla na área de Humanidades, não se subverte nem melhora a realidade.

Para Jean Piaget:

A principal meta da educação é criar pessoas capazes de fazerem coisas

novas, não simplesmente repetirem o que outras gerações já fizeram.

Pessoas criadoras, inventoras, descobridoras.

E a segunda meta da educação, ele reforça: “…é formar mentes que estejam em condições de criticar, verificar e não aceitar tudo que a elas se propõe”.

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