Não, você não leu errado. E você continua em um blog que trata de tudo o que se relaciona ao aprendizado. Ocorre que muitas vezes para que o aprendizado se realize precisamos, antes, desaprender conceitos antigos ou, simplesmente, errados. E se você desconfia que desaprender é difícil, acertou!
Outro dia li uma definição interessante do prolífico autor e renomado palestrista, Gustavo Razzetti. Num artigo para a revista Psychology Today ele diz que aprender nem sempre é sobre adquirir novas ideias mas algumas vezes trata-se de se libertar de velhas ideias. Ele lembra que em um cenário de mudanças rápidas e constantes como o atual, tanto em níveis pessoais como profissionais, aceitar mudanças se tornou mais do que uma opção, mas condição necessária para o sucesso.
Segundo ele, adaptar-se ao novo geralmente exige uma mudança significativa em nossos padrões de pensamento, marcada por um processo poderoso e transformador: a desaprendizagem. A ideia, aliás, tem sido a bola da vez em ambientes corporativos já por algum tempo.
Razzetti acredita que como sociedade colocamos muita ênfase em adicionar sempre mais conceitos e informação, quando na verdade isso muitas vezes dificulta o aprendizado. Para ilustrar o desaprender, Razzetti recorre a um continho da filosofia Zen, que usa a imagem de uma xícara cheia, na qual é impossível colocar chá fresquinho, a menos que seja esvaziada primeiro.
Não gosta de chá e precisa de outra imagem? OK. Pense num armário repleto de roupas antigas, que você raramente ou nunca usa. Para que possa colocar lá outras peças, que lhe sirvam melhor, primeiro tem de abrir espaço para elas e portanto precisa se desfazer das que tem.
É evidente que não se pode levar a metáfora ao pé da letra. Porque neste caso teríamos de concordar que se desfazer de uma ideia ou conceito seria algumas vezes como desperdiçar algo que ainda é bom e útil. E o fato é que, aqui, estamos tratando daquilo que abandonamos por não ser ou nunca ter sido bom, pra começo de conversa. Abordaremos algumas exceções ao final do texto.
Pragmaticamente falando, além de conceitos e ideias que precisam ser desaprendidos, a forma como fazemos as coisas também precisa ser revista. A manufatura de certos produtos, o gerenciamento de recursos materiais e humanos, o design de aprendizado, enfim, tudo isso se associa a ideias que necessitam ser desaprendidas e reaprendidas, porque senão a gente continua repetindo o que não faz mais sentido.

Dissonância cognitiva
Há várias outras analogias possíveis, mas para entender o conceito de uma forma um pouco mais profunda talvez seja melhor nos valermos do processo que geralmente ou em muitos casos precede o aprendizado.
Há hoje vasta bibliografia afirmando que o aprendizado geralmente se dá a partir do desconforto. Por isso temos ouvido mais e mais sobre a necessidade de sairmos da nossa zona de conforto. A banalização dessa ideia leva muita gente a desconsiderá-la, ou enxergá-la como lugar comum, modismo. É preciso, no entanto, ir ao âmago da questão.
O desconforto que pode estar na gênese do aprendizado é experimentado quando somos expostos a novas formas de ver o mundo e esses conceitos batem de frente com o que já temos como ‘verdade’ pré-estabelecida, ou seja, quando acontece um tipo de dissonância. Quando aprendemos algo, buscamos a consonância cognitiva e/ou emocional (um alinhamento) com aquilo que já acreditamos ou aprendemos antes. A dissonância, ou discordância, é o que causa desconforto. E é a partir deste conflito e posterior análise e comparação que temos a oportunidade de nos desapegarmos do que parecia fixo e aprendermos algo novo.
Quando há evidência sobre uma nova informação, uma abordagem ou definição, estabelece-se movimento de busca de consonância cognitiva e/ou emocional. E isso nem sempre é possível.
Todo mundo experimenta dissonância cognitiva em algum momento da vida, em maior ou menor grau, mesmo que nem sempre seja fácil reconhecê-la. Daí só seremos capazes de aprender se aceitarmos romper com o que julgávamos correto.
Note que não estamos nos atendo aqui a situações estritamente acadêmicas ou escolares. Pense por exemplo quando você quer levar uma vida saudável e descobre que sua dieta e sua rotina de atividades físicas demonstram o oposto. Vamos falar, hipoteticamente, de uma pessoa que aprende que uma latinha de coca-cola tem quase 39 gramas de açucar. Ela sabe que tem de diminuir o consumo de açúcar por uma questão de saúde e mesmo assim toma uma latinha todo dia. Nesse sentido, agora que tem a informação, pode escolher mudar este hábito, ignorar a nova informação completamente ou continuar com ele mas admitir que esta dissonância lhe causa sentimento de culpa (ou desconforto).
Por falar em escolhas, sugiro um outro post deste blog.

Do pessoal para o social
Podemos ainda extrapolar um dilema supostamente pessoal para o âmbito social. Se uma pessoa aprendeu conceitos errôneos ao longo de sua formação e esses conceitos a levam a posições e atitudes racistas e discriminatórias, ao receber informação contrária ao que foi incutido em sua mente ela pode modificar sua conduta em sociedade e se tornar uma pessoa, cidadã melhor e mais justa e colaborativa na construção de uma sociedade equalitária.
O processo acima também não significa (sempre) uma transição tranquila. Por várias razões. Entre elas, claro, o racismo estrutural , cuja abrangência exige muito mais tempo e explicação. Sua existência alimenta, às vezes sem que se perceba, os tais conceitos adquiridos na formação e a dificuldade de mudar.
No que se refere à questão ambiental, vamos pensar num exemplo ligeiramente diferente. Uma pessoa tem mais de um veículo movido a gasolina e aprende que a queima de combustíveis fósseis aumenta a emissão de gases de efeito estufa, contribuindo para o aquecimento global. Apesar de dados abundantes confirmando a nova informação, a dissonância leva a pessoa a buscar outras fontes que justifiquem aquilo que prefere acreditar.
Em resumo, a reação a uma dissonância nem sempre resulta em aprendizado, mas é uma grande oportunidade para que isso aconteça.
Critérios, análise e escolhas…
Até agora falamos de mudanças válidas, que se dão a partir do movimento de desalojar conceitos obtusos ou sem fundamento para receber padrões de pensamento que fazem mais sentido, são moralmente válidos ou cientificamente comprovados e que portanto podem nos preparar para um mundo em constante mudança.
Há, porém, situações em que a dissonância cognitiva ou emocional causa conflito, seguido de desconforto, sem contudo levar a uma mudança positiva. Talvez o melhor exemplo nesse sentido seja a pressão do grupo na adolescência, quando abrimos mão de alguns princípios e abraçamos comportamentos com os quais não nos alinhamos e aos quais adotamos com o único intuito de pertencer a um grupo ou nos sentirmos aceitos, mesmo que esse novo padrão de comportamento ou atitude não seja o melhor para nossas vidas.
O mesmo vale para algumas religiões que se utilizam de gatilhos emocionais e de situações de vulnerabilidade de certos indivíduos para lhes apresentar uma suposta verdade que lhes dará alívio naquele momento. Essa “verdade” será aceita até mesmo sem conflito, simplesmente porque responde ao que aquela pessoa julga precisar para fugir do sofrimento. Quando há dissonância, novamente, há a possibilidade de se aprender a resistir e buscar outras alternativas.

Tecnologia, inovação e o tal mercado de trabalho
É interessante observar que a maior parte do material que se encontra relativo a desaprender tem a ver com treinamento empresarial. Quase sempre se fala de ambientes de trabalho, em sua maioria em empresas ligadas à tecnologia e à inovação. Eu já me acostumei a beber na fonte deles, mesmo quando quero mesmo é saber como aplicar isso no mundo escolar ou universitário.
No entanto, não me agrada a ideia de que toda mudança é determinada por um deus mercado, porque isso tira toda nossa agência e vira meio que um guia de dicas para se dar bem no trabalho e, como vimos, desaprender é muito mais do que isso.
O que, sim, me chama a atenção é compreender o efeito em cadeia : as mudanças rápidas na tecnologia buscam atender a novas demandas, enquanto os recursos humanos também mudam porque agora contam com novas tecnologias e ferramentas digitais, e isso afeta a maneira como o trabalho vai ser desempenhado e o valor que terá dentro deste novo paradigma.
Então, quem trabalha há anos em um lugar e tem a mesma rotina de atividades vai acabar percebendo que seu trabalho não poderá ser desempenhado da mesma forma e em alguns casos mais drásticos vai descobrir que, por conta das transformações nos meios de produção, sua função inicial será totalmente modificada ou deixará de existir .
Por isso as corporações e palestristas como nosso amigo Razzetti lá do começo do texto estão tão preocupados. É preciso deixarmos para trás modelos que não funcionam mais até para continuarmos relevantes. E nesse ponto penso que a necessidade se aplica também a professores e educadores em geral.

Para terminar, voltemos ao conto Zen que ilustra a ideia do desaprender.
Diz-se que um professor universitário, especialista na filosofia Zen, decidiu visitar um mestre Zen muito respeitado, que atraía muitos discípulos. Ele queria aprender por que isso acontecia. Chegando à casa do mestre, começou a falar sem parar usando todo seu conhecimento sobre o Zen. Enquanto ele falava, o mestre resolveu lhe servir chá, preparando tudo lentamente. Ao servi-lo, o mestre derramou a água na xícara até transbordar. O professor não se conteve e gritou: “Chega, a xícara está transbordando, não cabe mais nada”. Ao que o mestre respondeu: “O mesmo acontece com sua mente. Não posso te ensinar coisa alguma até que você esvazie sua xícara.
Importante: Este texto é uma reflexão, um ponto de vista sobre temas que estão sendo estudados, alguns há anos, como a Teoria da Dissonância Cogntiiva, publicada em 1957 por Leon Festinger e a ideia de desaprender, mais recente. Visa unicamente provocar discussão e ‘alimento para o pensamento’. Seu comentário é muito bem-vindo!
