Escola pós-pandemia não é (só) sobre o que perdemos

A variante Delta veio acrescentar um fantasma aos muitos que rondam este retorno ao ensino presencial. Independente de como cada escola está, ou não, preparada para a volta, é fundamental não estigmatizar uma geração de estudantes com um discurso de perdas irreversíveis no aprendizado.

Um amigo diz sentir “um clima um pouco estranho” nesta volta às aulas tão especial ( e controversa). “Parece que eles não querem falar”, resume o profissional de Artes, com mais de 25 anos de experiência em sala de aula em escolas públicas de São Paulo, referindo-se a seus alunos. Já o professor de inglês do meu filho, em seu primeiro dia de aulas aqui nos EUA, admite em frente a seus pupilos estar “nervoso”. Mesmo com a infra-estrutura e toda a preparação que o distrito escolar da nossa atual cidade lhe oferece e o rosto coberto por máscara, seu medo, segundo meu filho, era palpável.

Se a normalidade parece distante na maior parte do mundo, o enorme alarmismo sobre os prejuízos causados ao aprendizado no Brasil não estão ajudando em nada. Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo) e que esteve à frente do Campanha Nacional pelo Direito à Educação por 14 anos, é categórico quanto a isso. Em sua conta do Twitter disse, em julho: ” A moda agora é dizer que os estudantes tiveram um prejuízo irreversível na pandemia. Prejuízo, sim. Irreversível, jamais. É cruel e antipedagógico marcar o fracasso nas crianças e limitar suas possibilidades de aprendizado”.

Falando com exclusividade à Claraboia, Aline Marks, historiadora e psicopedagoga, fundadora da plataforma Sonhar Livre, tem opinião semelhante. “Acredito que sempre é possível ‘recuperar’ aprendizagens, pois aprender é algo intrínseco à vida e ainda temos a neuroplasticidade que favorece o aprender em qualquer tempo, desde que as estratégias e estímulos adequados sejam utilizados. Então, mesmo que os estudantes tenham perdido conteúdos relacionados aos currículos estabelecidos pelos governos e pelas escolas, eles aprenderam muitas outras coisas”.

O argumento de Aline vai ao encontro da mensagem de Daniel Cara que salientou em seu tweet (que até o fechamento deste texto tinha 11, 5 mil curtidas): “Quem fala sobre educação precisa estudar Pedagogia”. Aline elabora sobre essa necessidade: “Existem diversas teorias pedagógicas e da aprendizagem que reforçam a necessidade de os educadores conhecerem os saberes prévios de crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos, a depender do tipo de curso que é oferecido, para que seja possível criar planos de aula coerentes com as necessidades de aprendizagem dos estudantes”. A psicopedagoga nos dá conta também que: “[F]ica cada vez mais evidente a emergência da educação socioemocional para a construção de uma sociedade democrática, justa e solidária, pois partindo das premissas da CNV (Comunicação Não Violenta) é preciso saber identificar as emoções, nomeá-las, perceber as necessidades ligadas as elas e comunicar tais necessidades de forma assertiva”, ensina.

Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da USP. Foto: Campanha pelo Direito à Educação. “É cruel e antipedagógico marcar marcar o fracasso nas crianças e limitar suas possibilidades de aprendizado”.

Em artigo recente para a Edutopia, a professora de high school (ensino médio) Jamie Kobs defende que devemos focar nos ganhos em aprendizado desta fase e não estigmatizar os alunos que enfrentaram todos os problemas relacionados a essa pandemia: “Ao invés de lamentar a perda de aprendizado ou estressar pensando como a pandemia atrasou seu currículo e a educação de seus estudantes, eu te encorajo a começar este ano escolar (semestre no Brasil) pedindo a seus alunos que reflitam sobre o quanto eles cresceram por causa da pandemia”(em tradução livre).

Isso não significa, em absoluto, negar o impacto destes mais de 15 meses, muito ao contrário. Para Aline Marks:”É preciso reconhecer que vivemos um período de instabilidades sociais atrelado a toda violência e sofrimento que o vírus provocou para que possamos acolher nossas dores e nos autoconhecer, e, assim, conseguirmos acolher os estudantes com suas dores e sofrimentos e colaborar com seu autoconhecimento e autonomia, para que eles possam lidar com suas emoções e aprender”.

Afinal, como Kobs aponta, quando professores e gestores falam de perda normalmente estão se referindo às chamadas ‘hard skills‘, habilidades mensuráveis como língua, matemática e outras disciplinas; já as ‘soft skills‘ligadas às habilidades socioemocionais são mais difíceis de medir. A partir das reflexões de seus alunos, ele chegou a uma lista de cinco grupos de habilidades para começar um diálogo mais produtivo:

  • -flexibilidade ou adaptabilidade;
  • – gerenciamento de tempo;
  • – comunicação ou trabalho em grupo
  • – auto-motivação ou definição clara de objetivos;
  • – responsabilidade ou independência
Aline Marks, psicopedagoga, fundadora da comunidade Sonhar Livre. Foto: Aruqivo pessoal. “Acredito que sempre é possível ‘recuperar’ aprendizagens, pois aprender é algo intrínseco à vida e ainda temos a neuroplasticidade que favorece o aprender em qualquer tempo, desde que as estratégias e estímulos adequados sejam utilizados”.

É evidente que uma lista como essa não vem pronta, já formulada. Ela é identificada e construída a partir das respostas e histórias contadas pelos alunos nas atividades reflexivas. O papel do professsor é justamente é abrie esta oporunidade, ajudando no reconhecimento dessas habilidades para que os estudantes percebam que em meio ao medo, à dor e às incertezas eles conseguiram caminhar.

Segundo Aline: “É válido considerar o exercício dialético de relacionar o todo social com as histórias individuais, uma vez que se olharmos só para o individual, e desconsiderarmos tudo que socialmente nos afeta seremos cruéis, por outro lado se olharmos somente para as situações sociais e ignorarmos como cada pessoa vivencia tudo isso, seremos insensíveis”, finaliza.

Há várias maneiras de se chegar a uma lista de tópicos que podem ser trabalhados neste retorno. A própria Jamie Kobs conta ter partido de um quadro do Jamboard, no qual seus alunos respondiam a algumas perguntas gerais sobre sua vida durante a pandemia.

Construir nuvens de palavras, com Mentimeter ou outras das ferramentas disponíveis funciona como um bom ponto de partida, uma vez que o resultado visual nos dá uma ideia das palavras (e sentimentos) mais prevalentes. Tudo depende do nível de maturidade dos alunos de cada turma. Ajuste as questões em função da clareza e da profundidade que se quer obter, em cada caso.

Em turmas mais difíceis, ou com menos bagagem retórica, experimente trazer uma lista de frases com as presunções mais comuns e discutam a partir delas. Pode ser sobre a quarentena, sobre o ensino online, sobre solidão ou coisas mais práticas como o uso de máscara e a vacinação. Para cada frase, comece com a pergunta: Concorda ou não concorda?

Numa segunda etapa seria hora de encorajar discussões em pequenos grupos, dentro dos protocolos de segurança exigidos pelo momento, claro. Os próprios alunos, juntos, podem indicar caminhos – para demonstrar as conclusões a que chegaram ou as dúvidas que ainda têm – via texto, produção artística como colagem digital, teatro, música…

Qualquer abordagem que se escolha, porém, tem de ter como base muita sensibilidade e o objetivo maior deve ser o de acolhimento, garantindo que o tempo longe da escola será recuperado com a cooperação de todos. Reforçar o contrário seria injusto com esses estudantes e um desrespeito às vidas que se perderam, essas sim de forma irreversível.

Foto de abertura:  Mary Taylor from Pexels

Foto: Thirman, Pexels

I

2 comentários em “Escola pós-pandemia não é (só) sobre o que perdemos

  1. Ótima matéria e reflexão. Concordo que houve perdas, mas que serão superadas e darão novas reflexões e experiências para a vida dos alunos. Como nas guerras, cada um terá uma estória pra contar.

    Curtido por 1 pessoa

    1. Muito obrigada por seu retorno, Rita. Se não pensarmos assim, vamos prejudicar ainda mais todos os estudantes que estão vivenciando este momento tão difícil!

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