O título em português da autobiografia de Gabriel García Marquez (Vivir para Contarla, 2002), além de simples e bonito, nos leva a pensar que se não narrarmos a vida, a nossa e a de outros, é como se ela não tivesse existido.
É por isso que contar histórias é algo tão importante. E uma coisa muito interessante é que, às vezes, há uma porção de histórias de vida curiosas e surpreendentes muito próximas de nós.
Enquanto a gente adora ouvir uma boa história, vibrar com as aventuras dos herois e heroínas, sofrer com seus dramas e adversidades, acabamos deixando de enxergar algumas histórias reais em torno de nós.
No texto de hoje, compartilho uma ideia para aulas de Português, História, PLE, ESL e até para o Fundamental 1 que pode abrir os olhos e ouvidos de seus alunos ( e os seus!) para lindas narrativas à espera de serem contadas.
Vovô, mamãe, titia…
Lembro-me de uma experiência muito rica do então Núcleo de Memória do ABC, que nos idos dos 80 coletava ‘causos‘. Os entrevistados eram na maioria migrantes do interior do estado de São Paulo, de Minas ou de estados do Nordeste. Os chamados causos eram em parte histórias reais, como lembradas por seus narradores, outras vezes contos fantásticos, que passavam de geração a geração, e muitas anedotas engraçadas que os entrevistados costumavam ouvir.
Se perguntados, não saberiam dizer se eram reais ou não, e isso nem tinha importância. O que valia era tudo o que se podia ouvir nesses relatos: sotaques marcantes e deliciosos, talento para contar uma história que se não fosse contada daquele jeito talvez nem tivesse graça, momentos de puro entretenimento…
Outro fator relevante neste projeto era que muitos dos que contavam os causos eram idosos. Gente a quem ninguém dava muita atenção e que de repente se via no centro do ‘palco’, alguém com uma mensagem que merecia ser guardada para a posteridade.
La vida no es la que uno vivió, sino la que uno recuerda y cómo la recuerda para contarla.
Gabriel García Marquez
Como reproduzir esse projeto em uma atividade
Tudo vai depender, como de praxe, do nível para o qual você leciona e de sua disciplina. Mas a base é a mesma. Se nos anos 80 os gravadores e as fitas cassete eram a base do “equipamento” de gravação, hoje basta que se tenha um telefone celular com um aplicativo de gravação qualquer. Claro que se alguém (ou a escola) tiver um microfone, melhor.
Uma das formas de organização pode ser a divisão da classe em grupos e cada um desses grupos ficaria encarregado de encontrar uma pessoa a ser entrevistada, com um critério básico: alguém que tenha uma boa história a contar e de preferência uma pessoa com quem alguém do grupo tenha certa familiaridade, para facilitar o clima de confiança mútua. Em turmas pequenas, a atividade pode certamente ser individual.
Antes de sair a campo, deve-se observar que:
- a pessoa a ser entrevistada deve concordar, logicamente, com a entrevista.
- os alunos do grupo devem explicar os objetivos do trabalho escolar ao/à entevistado(a) e de que forma a gravação será usada.
- os alunos entrevistadores devem ser orientados por sua/seu professora/professor sobre como conduzir a entrevista, de forma produtiva mas sempre respeitosa.
Quem entrevistar?
Quase todo mundo tem uma vizinha, uma avó, um padrinho…que é excelente contador(a) de histórias. Portanto, muitas vezes não é preciso ir longe. E, lembre-se, situações simples, quando bem narradas, podem ser muito interessantes também.
O que se aprende com esta atividade e como inseri-la em seu currículo?
Os relatos coletados funcionam como um texto do livro didático ou um conto literário. Pode funcionar como disparador de algo relacionado ao contexto do seu curso. Por exemplo, se você ensina língua estrangeira, a entrevista feita nesta língua, obviamente, trabalha compreensão, habilidade para interagir e entrevistar oralmente e se, for o caso, trabalha o conteúdo cultural apresentado pelos entrevistados.
Já numa aula de Português, o discurso pode ser analisado: vocabulário, figuras de linguagem, estrutura da narrativa. E se a disciplina for História, os contos passados podem ser ótimos para compararmos como os eventos são transmitidos por meio da oralidade de geração a geração, como são modificados e representados no presente (nesse caso, pode-se inclusive dirigir um pouco mais as entrevistas para períodos específicos, se possível).
Para uma experiência ainda mais rica, super indico que a classe reflita ao fim da atividade sobre suas descobertas, seus desafios, o que aprenderam sobre o conteúdo do curso e fora do que foi planejado… Nesse sentido, as mesmas histórias podem ser recontadas pelos alunos, como tarefa, de forma mais convencional ou com alteração na ordem em que os fatos foram apresentados na história original.
Para integrar a ideias às aulas de Arte, pode-se produzir um pôster, uma tira ou um fanzine sobre cada história ou sobre as melhores, devidamente escolhidas.
Experiências gratificantes
Além de tudo o que pode ser explorado do ponto vista didático-pedagógico, há que se ressaltar que este tipo de atividade coloca jovens em contato com pessoas mais velhas e de certa forma os leva a valorizar as experiências de vida dos mais velhos, sejam parentes ou não. Esses laços promovem a empatia e fazem com que os mais velhos sejam vistos como seres humanos integrais, com muito a oferecer às suas famílias e comunidades.
A riqueza das narrativas orais também pode ser enfatizada por meio de obras literárias que focam no gênero, contos do nosso folclore ou de tradições estrangeiras. E ao final cada aluno/aluna pode também pensar em como contaria suas próprias histórias.
Por mais jovem que cada um seja, há sempre um evento, por mais banal que seja, que ganha uma cor diferente quando bem contado…
Bônus
Para quem tiver condição e tempo, há ainda a alternativa de se filmar cada entrevista e de se trabalhar, dentro de um projeto maior, na produção de um pequeno documentário, envolvendo vários outros aspectos do aprendizado e, quem sabe, realizando uma grande apresentação para toda a escola.
Como sempre, se levar adiante essa ideia, volte pra contar. Viver para contar, como García Marquez 🙂
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Trabalhos com histórias orais de vida são sempre incríveis!!
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Totalmente de acordo.
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